A frequência das evacuações na criança é variável, mas, habitualmente, não podem ser dolorosas nem as fezes muito endurecidas. A obstipação, que é a dificuldade para evacuar, acomete com frequência as crianças, representando cerca de 5% das queixas nos consultórios e apresentando uma prevalência de quase 40% (1). O papel da cirurgia pediátrica, nesses casos, é descartar as patologias, geralmente congênitas, que causam esse problema.
A obstipação na infância costuma se iniciar quando ocorrem as mudanças de dieta e como, na maioria das vezes, não está associada à uma patologia especifica é chamada de funcional. Os casos de obstipação costumam ser progressivos e, naqueles mais graves, as crianças ficam vários dias sem evacuar ou só evacuam com a realização de lavagens retais. Outra queixa frequente é a eliminação de fezes na roupa, denominada soilling ou encoprese, que costuma estar associada à existência de fecaloma, isto é, fezes volumosas e endurecidas no intestino.
Com a obstipação, após algum tempo, estabelece-se um ciclo vicioso em que, por sentir dor para evacuar, a criança passa a evitar as evacuações o máximo possível. Isso faz com que as fezes fiquem mais ressecadas e difíceis de serem eliminadas, o que agrava todo esse quadro. Progressivamente, ocorre uma dilatação da parte final do intestino, o reto, que passa a funcionar como um reservatório de fezes, perdendo também a capacidade de provocar o desejo de evacuação.
Orientações sobre a dieta, com a inclusão de fibras e líquidos, e procurar estabelecer um horário para a criança evacuar diariamente, podem resolver os casos leves. Já nos casos graves, o mais importante é quebrar esse ciclo vicioso fazendo com que a criança evacue com frequência e de forma indolor. O primeiro passo é eliminar o fecaloma, quando esse estiver presente. Para isso, são necessárias lavagens retais diárias que, de preferência, devem ser realizadas no mesmo horário. Depois, inicia-se o uso de laxantes, estimulando as crianças a evacuarem nos mesmos horários em que eram feitas as lavagens. Caso a criança fique mais do que dois dias sem evacuar ou volte a apresentar soilling, deve-se realizar uma lavagem retal, que deve ser repetida quando necessário.
Esse é um tratamento demorado, cujo resultado depende muito do engajamento dos pais que, antes de tudo, devem estar convencidos de que estão fazendo o melhor para seus filhos. Na maioria das vezes, em poucas semanas, nota-se uma melhora da obstipação, embora, períodos de retrocesso sejam frequentes. Isso acontece porque, após uma melhora inicial, é comum que os cuidados com a dieta e o estimulo à manutenção de um hábito intestinal diário diminuam.
Após ter se conseguido que a criança apresente evacuações espontâneas que não precisam ser diárias, mas com a eliminação de fezes não endurecias e sem desconforto, pode-se iniciar o processo gradual de retirada dos laxantes. No começo, o uso diário deve ser mantido reduzindo-se a dose, para somente depois, tentar-se reduzir a frequência. E, caso se note uma piora no padrão da evacuação, deve-se retornar à etapa anterior ou corre-se o risco de, em pouco tempo, perder-se toda a melhora obtida.
Caso, após algumas semanas, não se note melhora da obstipação, deve-se cogitar a possibilidade de alguma patologia cirúrgica. Essa não é a abordagem inicial porque, além dessas doenças serem pouco frequentes, a investigação das mesmas implica a realização de exames que são invasivos. Algumas dessas patologias já são descartadas com o exame físico inicial, como é o caso das anomalias anorretais em que a posição e o tamanho do ânus estão alterados. Esse diagnóstico, normalmente, é feito logo que a criança nasce, como nos casos em que o ânus é imperfurado, mas existem outros com alterações mais discretas que passam desapercebidos e que só são diagnosticados depois de alguns meses. Excluídas as anomalias anorretais, é o megacólon congênito a patologia cirúrgica que mais frequentemente causa obstipação.
O megacólon congênito ou Doença de Hirschsprung é uma patologia em que a ausência de inervação normal no reto faz com que a criança tenha dificuldade para evacuar. Alguns casos já se manifestam com gravidade nos primeiros dias de vida e são tratados precocemente. Outros, porém, têm uma sintomatologia menos intensa e acabam entrando no diagnóstico diferencial da obstipação funcional. O diagnóstico dessa patologia pode ser feito através da realização do enema opaco que é a introdução de contraste pelo ânus, semelhante à lavagem intestinal, seguida da realização de uma série de radiografias. Esse exame pode mostrar uma alteração característica do megacólon congênito. Caso persista a dúvida, outros exames são necessários, como a manometria anorretal e a biópsia do reto. A manometria, que é o estudo das pressões dos músculos ao redor de reto e do ânus, é menos invasiva, mas são poucos os lugares que fazem esse tipo de exame. Já a biópsia retal, embora seja tida como o exame que em 100% das vezes confirma o diagnóstico de Hirschsprung, tem o inconveniente de quase sempre precisar ser realizada sob anestesia geral.
O tratamento do megacólon congênito requer a realização de uma cirurgia de grande porte que pode ser acompanhada de complicações e em que os resultados, em cerca de 20% das vezes, não são bons. Por isso, deve ser realizada somente quando não existe dúvida quanto ao diagnóstico.
Acredito que uma boa forma de concluir esse tema é enfatizando a necessidade de paciência na condução dos casos de obstipação intestinal, sempre priorizando a participação efetiva dos pais e das crianças maiores durante todo o processo.
Referência
1. Conhecimento do pediatra sobre o manejo da constipação intestinal funcional